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Vi um santo falar sobre a fome

Artigo do padre Cristovam Iubel, vigário da paróquia Santa Cruz e Nossa Senhora das Dores, de Guarapuava (PR).

Junho e Julho de 1980. Com vinte anos de idade, fiz uma viagem difícil e cansativa, de ônibus, saindo de Pitanga (PR) e chegando em Picos (PI). 2.972 km. Foram alguns dias de viagem, parando de pouco em pouco. O ônibus? Convencional, se é que dava para chamar de tanto: Pitanga a Guarapuava, Guarapuava a Curitiba, Curitiba a São Paulo, São Paulo a Teresina, Teresina a Picos. Ufa!

O motivo da viagem: uma missão por imersão nas paróquias mais pobres do interior do Piauí, onde a água era uma raridade. Quem me acolheu foi Dom Augusto Alves da Rocha (já falecido), bispo diocesano, e seu vigário geral, padre Alfredo Shaffler, hoje bispo emérito de Parnaiba (PI). Andei, escutei e falei em muitas comunidades, convivendo com pessoas extremamente pobres. Foi então que entendi, na prática, aquilo que sabia sobre o lugar e a importância da doutrina social da Igreja e da teologia da libertação.

Um dia, estando no interior, foram me buscar para que, num pequeno grupo de jovens, fôssemos ver e ouvir o jovem Papa João Paulo II, em Teresina, onde o avião que o conduzia faria uma breve escala para que ele, no aeroporto, falasse ao povo da região, especialmente do Piauí e do Maranhão. 324 km de estrada engarrafada e esburacada, num carro popular. Oito incríveis horas de viagem. Próximo do aeroporto montamos uma barraca – já havia muitas outras no local – e ali rezamos, partilhamos o que cada um levou e dormimos “em berço esplêndido”, tanto era o cansaço.

No dia seguinte, o tão esperado encontro. João Paulo II, como jovem no pleno sentido da palavra, atleta e ator, encantou a multidão que o aclamava com entusiasmo e vibração.

Num certo momento, um grupo de jovens levantou uma enorme faixa, onde estava escrito. SANTO PADRE, O POVO PASSA FOME! Eu estava muito próximo desse grupo. João Paulo II parou o que estava dizendo, ficou em silencio por alguns instantes e olhou para a faixa fixamente. E então disse, quase num grito: PAI NOSSO, O POVO PASSA FOME! Fez um breve comentário e pediu que rezássemos juntos o Pai-Nosso.

Foram momentos de profunda comoção e espiritualidade. O Papa, tropeçando no português repetiu algumas vezes a mesma prece: PAI NOSSO, O POVO PASSA FOME! Os aplausos pareciam não ter fim.
Porém, estávamos em plena ditadura militar. Um grupo de militares cercou os jovens com a faixa assim que o avião decolou com o Papa. O tumulto foi grande. O povo não queria que ninguém fosse preso. Eu estava, mesmo que por acaso, com o grupo, e fomos cercados pela polícia da repressão. No vai e vem, fiquei fora do grupo que foi preso e encarcerado. Fomos todos para a frente da delegacia, pedir a soltura dos manifestantes, o que aconteceu somente no dia seguinte. Dizem que o Papa, ao saber do ocorrido, telefonou para o governador pedindo que os jovens fossem libertados. Nunca consegui saber se o Papa de fato entrou em contato com o governador.

Depois de voltar para Picos, completei o tempo de missão e voltei para o Seminário, em Ponta Grossa (PR). Pouco tempo depois, a Editora Vozes, ainda em 1980, publicou um livro com todos os pronunciamentos do Papa no Brasil (Pronunciamentos do Papa no Brasil, Textos apresentados pela CNBB, Vozes, Petrópolis, 289 páginas). Fui direto à página 207, onde, sob o título “Aos oprimidos pela pobreza”, encontrei o texto oficial do Papa em Teresina. No entanto, nada constava sobre a leitura e os comentários que João Paulo II fizera da faixa, e da consequente oração do Pai-Nosso. Não me aguentei e liguei para a Editora Vozes, onde fui informado que só os textos oficiais previamente recebidos pela CNBB, poderiam ser impressos. Quanto aos comentários e declarações espontâneas do Papa, nada seria publicado.

Sempre que leio o pronunciamento oficial de João Paulo II em Teresina, no dia 08 de julho de 1980, sinto a tristeza de não encontrar as palavras saídas do coração do Papa, pedindo justiça e partilha.

SÃO JOÃO PAULO II, intercedei por nós junto ao Pai, para que nossos corações se abram à conversão e à fraternidade!

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